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Mais uma história das enfermarias

O Sr. D. estava relativamente "bem". Talvez "bem" seja uma palavra demasiado forte. Tinha um tumor do cavum, com o qual convivia quase que pacificamente à custa de muita quimioterapia que lhe destruiu o sistema imunitário. Mas fazia a sua vidinha normal, apenas ligeiramente mais debilitado que todos os outros; com os seus 70 e muitos anos, acordava de manhã, fazia o pequeno almoço, passeava, almoçava, lia o jornal, descansava, via televisão, jantava e ía para a cama. Até ao dia em que os seus intestinos pararam, e os vómitos de comida acumulada há muito começaram a surgir.

Veio ao serviço de urgência com aquele quadro típico de obstrução intestinal. Fez os seus exames, e ficou surpreendido ao descobrir que teria de ser operado, pois a endoscopia digestiva alta tinha mostrado uma úlcera perfurante mesmo ao pé da região pilórica, que criara uma inflamação a tal ponto que obstruiu o piloro.

"Mas nunca sentiu dor? Azia? Nada?", perguntávamos nós, meio estupefactos, ao vermos o buraco que ligava o seu estomago à sua cavidade abdominal. "Não, nada... só os intestinos é que deixaram de funcionar...",dizia ele, quase que bem disposto. Pois é, o Sr. D. tinha uma sensibilidade à dor muito abaixo da média.

O Sr. D. foi operado, fez-se a rafia da úlcera, teve um pós-operatório sem febre, recuperou relativamente depressa, e foi para casa.

Duas semanas depois, no meio de macas que entopem corredores no SU damos de caras novamente com o Sr. D. Estava apirético, consciente, orientado... Mas este Sr. D. estava com um aspecto deplorável. A sua pele tinha ficado acinzentada, os seus olhos meio vidrados, e a sua boa disposição convertera-se numa tristeza profunda. "Isto não está a correr bem, sr. dr...", diz ele ao meu tutor.

Tirámos o penso, fomos ver a cicatriz, que ainda não estava cicatrizada, e estava até muito longe disso. À mínima expressão, saíu da sua cavidade abdominal um líquido castanho avermelhado, algo que dáva para classificar facilmente como "conteúdo entérico com sangue à mistura".

"E dor, sente dor, sr. D.?".
"Não, sr. dr, dor não sinto... é uma fraqueza, uma indisposição... mas dor não sinto."

Decidiu-se reoperar o doente. Ver de onde vinha aquele líquido que lhe preenchia a cavidade abdominal, ver de onde ele estava a surgir.

Já no bloco, abrimos a sutura anterior, e criámos uma nova ferida operatória para termos mais espaço de manobra.

Deparámo-nos com uma cavidade abdominal já meio digerida, cheia de pus, fezes, sangue... O estomago não se distinguia do epiploon, o fígado estava colado aos intestinos, e tudo com um aspecto cadavérico e cheiro putrefacto... Percebemos que tinha havido uma deiscência da rafia anterior, e o conteúdo gástrico tinha saído, ao longo de duas semanas, para a cavidade abdominal. Pois é, o Sr. D. tinha uma sensibilidade à dor muito abaixo da média, e isso tinha feito com que nada lhe doesse, com que todo o processo se manifestasse como uma simples "fraqueza, uma indisposição".

Tentou-se o melhor que se conseguiu.

O Sr. D. está agora na unidade, ligado a fios que o ligam a máquinas, rodeado de alarmes e bips que não o deixam dormir e que inquietam enfermeiras. Sempre que passamos por ele, dizemos um olá, e ele sorri sempre de volta. Um sorriso sofrido, mas sempre um sorriso. Tentamos combater infecções e desequilíbrios hidro-electrolíticos, enquanto o seu corpo tenta cicatrizar e recuperar, cada vez com menos sucesso, conforme denunciam as análises. Lentamente, o seu organismo parece desligar-se... os pulmões, os rins, o fígado ...

... mas o Sr. D. não sente dor ...

...

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2 comments:

anacruz said...

Muito sinceramente e se é que ainda é possível algum optimismo nesta história...ainda bem que o Sr.D não tinha dor!
No fim de mais um dia de Urgência restam as memórias dos pobres doentes que esperam muito mais de nós/da medicina do que podemos/ela pode efectivamente oferecer!Como explicar a alguém com 53 aninhos, com neoplasia gástrica metastizada para os pulmões e cérebro, com vómitos incoercíveis há 4 dias, que grita cheio de dores, que não podemos dar-lhe mais morfina?E os nossos "velhinhos" que têm escrito no seu processo clínico DNR (decisão de não reanimar) e que temos que os deixar partir...(também não queremos praticar distanásia...) primeiro um, depois outro, e mais outro,...
Hoje foi um dia menos bom. Na Medicina Interna há muitos dias menos bons! Será que já alguma vez disse que não gosto de Medicina Interna?! O abismo entre o que esperam de nós e o que podemos dar...

Enfim Ana, desculpa ter feito deste cantinho um grande desabafo!

Força aí!

Ana said...

Ai, tanta verdade que existe dentro desse teu pequeno desabafo....

O Sr. D. acabou por morrer. Mais um daqueles doentinhos que marcaram....

:(