"O diagnóstico da apendicite aguda é clínico."
A grande maioria dos tratados que valem alguma coisa e que falam de apendicite aguda têm uma frase igual a esta escrita algures sobre o assunto. Isto é - se a criança tem uma apendicite, só por aquilo que ela nos conta juntamente com aquilo que vemos quando a observamos ficamos logo com uma ideia do diagnóstico.
Ora, e quando a criança nos chega e nos conta uma história idêntica à que vem nos livros, como se ela própria tivesse andado a decorar os capítulos de apendicite dos ditos calhamaços, ficamos logo com o bichinho atrás da orelha - "aha, isto parece uma apendicite!" Quando ela nos entra em posição de defesa abdminal, com o tronco flectido e as mãos como se a segurar a barriguita, o bichinho fala um bocadinho mais alto. Quando a observamos, e ela se encolhe cheia de dores à descompressão da fossa ilíaca direita, durante a palpação abdominal, o bichinho previamente instalado atrás da orelha desata a dizer alto e em bom som - "aha, isto tem uma grandessíssima probabilidade de ser uma apendicite!"
Diz-se à criança que a partir dali, ela já não pode nem comer nem beber até fazer as 6 horas de jejum. Diz-se para esperar um bocadinho lá fora, e vai-se falar com o chefe de equipa (pediatra), que, perante a descrição do caso fica também convencido que a hipótese diagnóstica de apendicite aguda faz bastante sentido.
Contacta-se os colegas de cirurgia... e obtém-se a resposta que sem análises, não se palpam barrigas (adorava saber de onde isto veio, pois vai contra toda a espécie de textos escritos em livros médicos, nem sequer é preciso ir para os livros específicos de cirurgia!)
Apetece-me sugerir que o diagnóstico é clínico, mas contenho-me.
Lá peço o velho hemograma e PCR só mesmo para ver como estão as coisas no sangue daquele rapaz. Já que havia uma grande probabilidade de ele acabar no bloco, decido pedir mais algumas coisitas pré-operatórias. Ele colhe análises... e fica à espera do resultado.
Algum tempo depois, vejo o colega de cirurgia pediátrica no serviço de urgência. Pergunto se já olhou para a barriga altmente suspeita do rapaz, e obtenho a resposta - "ainda não tem análises prontas." (vontade de refilar muito neste ponto, mas contenho-me)
Dirijo-me ao computador, vejo as análises ali chapadinhas, com parâmetros de inflamatórios claramente aumentados. Imprimo-as a vou ter ao encontro do colega.
"11 de PCR? 20000 leucócitos?! Ai tantos... isto não é uma apendicite!" é a resposta que eu recebo... ao que eu respondo - "mas a BARRIGA é de apendicite, a HISTÓRIA é de apendicite..." (- e apetece-me acrescentar - E O DIAGNÓSTICO É CLÍNICO!!! - mas contenho-me.)
Finalmente o colega lá chama a "tão-teimosa-não-apendicite" diagnosticada pela "tão chata interna de MGF" (que não deve perceber nada do assunto.... estou a referir-me a mim própria), e dois minutos depois a criança é orientada para o bloco operatório, para ser operada.
Uma hora depois, aparece o colega, a rir-se do caso, a dizer "era uma apendicite de caras!" (tipo, DUH!), abrimos a barriga, o apêndice estava ainda intacto mas gordinho gordinho! mal lhe mexemos, ele rebentou! era uma apendicite de caras!"
Todos se riem sobre o assunto, e falam de como era tão típica aquela história, e, por alguma razão que me transcende... ignoram-me quando eu pergunto se estão a referir-se à apendicite do meu miudo (tinha entrado outra suspeita de apendicite ao longo da tarde).
... vontade de matar alguém... mas contive-me.
Decidi antes vir desabafar um pouco para aqui. Não é com análises que se diagnosticam apendicites. AJUDAM, mas não fazem diagnóstico. Não é com ecografias que se diagnostcam apendicites. AJUDAM, mas não fazem o diagnóstico. E não é menosprezando os internos de MGF que se fazem diagnósticos de apendicite. Os internos podem perceber menos, mas percebem, e tentam ajudar... porque não dar-lhes um bocadinho pequenino de crédito de vez em quando?
Nóia....