Desde o meu primeiro contacto com a Medicina Geral e Familiar que decidi que queria ser médica de família. Agradava-me aquele ambiente familiar com os doentes, o saber quem o doente é antes de ele nos contar a sua história, o ambiente de consulta onde é possível explicar as coisas direitinho, o estudo da família e do cuidador das pessoas dependentes... Achei tudo isso o máximo, e disse para mim mesma: "vou tirar 100% no maldito do Harry, e vou entrar para MGF e ser a melhor médica de família que anda por aí!". A primeira parte não se concretizou... mas, não querendo desistir sem mais nem menos, continuo a lutar para que a segunda parte se concretize. =)
Nesse sentido, optei por fazer um estágio em cuidados domiciliários, para ter maior contacto com o doente dependente. Estava longe de imaginar que não seria o doente dependente que iria encontrar neste estágio, mas antes o doente paliativo.
Até agora, conheci 10 doentes. Todos eles em fase paliativa, a enfrentar a vida um dia de cada vez. Muitos deslocam-se, vão à rua, fazem a sua vida pela própria mão... mas todos eles sabem que não vão andar por cá muito mais tempo. A alguns, vou diariamente a casa deles. A outros, ainda só os vi uma vez. Todos eles nos recebem com um sorriso, há aqueles que nos contam anedotas para animar o espírito, há os outros que nos mostram que apesar de tudo ainda têm objectivos na vida (escrever um livro é um dos favoritos), há outros que a meio choram e desesperam, e há outros que nos pedem carinhosamente a opinião para uma nova peruca que oculte a doença que transportam... mas todos eles, independentemente de tudo, nos recebem com um sorriso.
A consulta ao domicílio destes doentes justifica-se. Pois hoje eles são autónomos e dependentes, mas num futuro não tão distante quanto isso, é provável que não venham a manter esse estado. Importa, assim, criar as condições para que, quando esse dia chegar, nós estejamos preparados para o enfrentar, e o doente confie em nós, e nós confiemos no cuidador desse doente.
Há também aqueles doentes em final de vida. Aqueles que já não se levantam da cama, não comem, não bebem, passam as horas num pranto que magoa a alma dos que os rodeiam. A estes, trazemos conforto. Já não trazemos alegria nem conversa, apenas conforto. A promessa duma morte melhor, na sua própria casa, junto de quem amam. A manipulação dos opióides e sedativos de modo a minorar o sofrimento, que eu própria já começo a dominar, lentamente. E, destes doentes, ninguém espera um sorriso nem uma anedota... mas, no final, o cuidador tem esse sorriso para nos oferecer. Um sorriso entristecido, mas que acompanha o "obrigado, doutora".
Apesar de não ignorar a humanização dos cuidados de saúde primários... vejo agora que nunca encontrei uma medicina mais humana do que aquela que tenho andado a viver nestes últimos dias. Espero conseguir, com um mês de estágio, transportar esta humanização para os cuidados que eu prória hei-de prestar nas próximas décadas.
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