Tem 30 e muitos anos.
Chegou ao serviço no dia em que eu cheguei ao serviço - ele como doente, eu como médica dele. Estávamos ambos assustados e desnorteados - ele como primeira vez internado, com uma pnemonia *daquelas*, eu como primeira vez a trabalhar com aquela equipa de médicos, sem saber do paradeiro das seringas, luvas e tudo o mais. Mas aguentámo-nos. A primeira conversa foi estranha - ele ofegante, fruto da sua pneumonia horrivel, com uma máscara de oxigénio a tentar inflitrar algum O2 por tanta secreção, eu enferrujada e pouco à vontade, fruto da circunstância. Mas foi ele o meu primeiro doentinho, no seu primeiro dia de estadia naquela enfermaria.
O tempo foi passando, e a pneumonia ora ía agravando, ora ía melhorando. Lobos pulmonares substituidos por uma mancha branca em cada uma das TCs, encontros diários com o estetoscópio, colheitas de sangue e gasimetrias - até lhes perdi a conta! - a maldita da toracocentese, a broncofibroscopia que prometia ser a ruptura desta nossa estranha "amizade" (se é que se pode chamar isso). E finalmente a festa do primeiro RX (depois de tantos outros) que mostrava um pulmão. Não uma mancha branca, não tecido pulmonar hepatizado, derrame pleural, nada disso. Estávamos perante um pulmão negro numa radiografia, e tinhamos de comemorar!
Começou a deambular pelo serviço, depois por todo o hospital. Recusou o oxigénio, refilou com as gasimetrias, acabou por chatear-se a sério com as colheitas de sangue constantes para monitorizar a quantidade de antibiótico no sangue. Contou as placas do tecto e os mosaicos do chão apenas para passar o tempo. Subia e descia as escadas 2 vezes ao dia, desde o piso 0 ao piso 8. Trinta e muitos anos, e há 1 mês e 6 dias no hospital. Consigo compreender o seu enfadamento.
Começou a ganhar novo humor, a meter-se com enfermeiras, médicas, auxiliares. Começou a ser visita diária de meia dúzia de doentes mais "abandonados", fez alguns amigos entre os velhinhos que chegavam e partiam das camas ao lado da dele, naquele seu quarto de hospital... e ele ía ficando. E ía-se entediando.
Mas onde quero eu chegar com isto tudo? Bom, ele teve alta hoje. Não cheguei a dizer-lhe um adeus, acho que a última coisa que lhe disse foi que ele era um cuscovilheiro, e que não devia andar a espreitar assim os computadores das pessoas enquanto elas trabalhavam. Ou se calhar isso já foi antes... enfim, já não me recordo. Mas acabei por não dar conta de ele ter saído.
... E no entanto, recebi dele a primeira carta de agradecimento. Ficou no processo. Dirigida a mim (e à minha tutora). E a sério, eu não sei como explicar a sensação de bem estar que aquela carta provocou em mim. No meio de frases bem humoradas, sarcasmo sobre a lentidão de todo o processo da cura, exigências irónicas, e tudo o mais, vinham as palavras mágicas - "quero agradecer-vos toda a vossa atenção"...
:) Indescritível, a sério... Vai ser um daqueles doentes que provavelmente nunca mais vou ver. Mas provavelmente também nunca mais vou esquecer...
Hora da sesta
10 years ago
3 comments:
e sao dias como este que alimentam muitos outros dias, dias em que as coisas nao correm assim tao bem
fico contente por saber que ainda existe uma medicina em que o doente consegue criar este elo com o seu médico, um elo que o torna inesquecível , um elo que dá ao médico uma razão para dar mais do que 100% de si aos seus doentes. e para mim, a vontade de continuar a estudar feita doida, na esperança de que um dia tambem eu consiga fazer a diferença na vida de muitos
És mm uma lamechas, miúda! :D
...E uma óptima médica!É cm disseste no postal antes do exame, remember?
S precisares da teoria q escreveste diz, q eu dp lembro-te!A prática já a sabes! ;)
Bjocas
Paula
Mas eu alguma vez iria esquecer?! ;) Tenho-a gravada em cada um dos neurónios que compõem este meu cérebro! :P
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